ALMOÇAGEME, DOIS MIL ANOS DE HISTÓRIA

 

MONS LUNAE PROMONTORIUM

Não se sabe exactamente há quanto tempo existe a fixação de população no local onde hoje é a aldeia de Almoçageme. Por aqui deambularam populações pré e proto-históricas, de acordo com os vestígios arqueológicos recolhidos em toda a região, que remontam aos séculos X a VII antes de Cristo. A permanente migração entrecruzada de clãs e tribos distintos, absorvendo ou sendo absorvidos pelas tribos locais, foram tecendo formas de sedentarização que, baseadas no pastoreio, no cultivo agrícola e num volume populacional crítico que permitia uma defesa comum perante agressões, acabaram por definir os locais mais adequados a uma fixação que  tinha meios de se manter geracionalmente. Tal como em grande parte do território, a fixação de populações nesta região construi-se de uma forma aleatória e progressiva.

Os  mons sacer, ou montes santos, misteriosos braços de montanhas que dividem "terras, mares e céu" - assim Plínio o Velho descreveu o Cabo da Roca na sua "História Natural" (Livro IV, 113) - topografias altaneiras onde o sol diariamente se apaga na vastidão oceânica, são locais sacros por excelência, témenos ou recintos sagrados, altares de pedra que escondem segredos insondáveis. Os promontórios não representam apenas um mero acidente geográfico; eles são, em simultâneo, um lugar de história e de religião, onde o culto destes locais ter-se-á iniciado em longínquas épocas pré-históricas com a qualificação dos primeiros espaços sagrados ou a erecção dos primeiros santuários. No mundo ocidental, e com a romanização, assistir-se-á não raras vezes à assimilação ou identificação desses antigos cultos a divindades romanas, num processo de interpretatio que os gregos já haviam aplicado e que os cristãos irão prosseguir e ampliar, reocupando e reconvertendo os velhos santuários pagãos, ou adaptando antiquíssimos ritos, para os atribuir à nova fé.»

« O cabo da Roca e a serra de Sintra - o "monte Tagro" de Varrão, onde as éguas concebiam do vento, o "Mons Sacer" de Varrão e Columela, o "cabo Ofiussa" de Avieno (numa evidente alusão ao culto ctónico das serpentes), o "cabo Magnum, Ártrabo ou Olissiponense" de Plínio o Velho ou o "Promontório da Lua" de Ptolomeu – encontram-se associados a antigos cultos pré-históricos, sucessivamente romanizados, cristianizados e islamizados, tanto mais que a zona constituía um obrigatório local de passagem para os povos que do Mediterrâneo iam a caminho do Norte, em busca das ilhas Cassitérides, ou que do Norte se dirigiam para as ricas zonas do centro-sul peninsular, a caminho do mar Mediterrâneo. Indício claro desses cultos astrais são as inúmeras lúnulas calcárias, ou placas em forma de crescente lunar, descobertas em jazidas arqueológicas da região e que expressivamente documentam o culto prestado à Lua.

Conhecido desde 1505 através de descoberta, por Valentim Fernandes ou Valentim de Morávia, de três aras consagradas a "Soli et Lunæ, Soli Æterno Lunæ e Soli Æterno", o humanista André de Resende estudou-o na sua célebre obra "De Antiquitatibus Lusitaniæ," publicada em 1593: "Junto ao sopé da serra, mesmo no cimo do promontório, que é cortado abruptamente sobre o oceano, existiu outrora um templo consagrado ao Sol e à Lua, do qual agora apenas existem ruínas nas areias do litoral e cipos, alguns com inscrições reveladoras da antiga superstição" . O arqueólogo Cardim Ribeiro sublinha: "Estamos claramente perante uma intencional forma de sincretismo entre um culto de cariz astral primitivo ] [ e, porventura, também herdeiro de remotas tradições religiosas regionais, quer ligadas ao ciclo solar, quer à ancestral deusa lunar e salutífera que, de noite, vaguearia pelas penedias e pelos densos bosques do monte Sagrado, da Serra da Lua" .»

Os bem conhecidos contactos entre a Península Ibérica e o mundo mediterrânico, a partir do período do Bronze final, desenvolveram-se extraordinariamente após o séc. VIII a.C., com os navegadores fenícios a estabelecer trocas comerciais regulares através de circuitos marítimos, fluviais e terrestres Aliás, a presença fenícia, e mais tarde púnica, está bem documentada nos grandes rios da fachada atlântica peninsular, na zona dos estuários do Sado e do Tejo, bem como na região costeira do Mondego ao Douro, locais largamente frequentados por populações de origem oriental em busca de trocas comerciais e recursos metalíferos.

O cabo da Roca não poderia, pela sua clara importância geográfica, ter deixado de suscitar forte temor e veneração aos marinheiros fenícios e cartagineses que por ele passaram, a caminho do Norte; a hipótese de ali terem erguido um local de culto dedicado a Astarté ou a Baal-Saturno é, por isso, muito verosímil. O invulgar orago remete para cultos saturnianos, em tudo semelhantes aos que se podem encontrar nos cabos de Sagres e de São Vicente, estes dedicados também a divindades saturnianas ou ligadas ao Tempo, entendido como ciclo e sucessão vital face à disposição astral dos corpos celestes – neste caso o Sol poente (Baal, Hércules, Kronos, Saturno). Será pois uma manifestação típica dos cultos das finisterras, neste caso a do próprio Cabo da Roca, que dali se avista.

Os comerciantes fenícios e gregos encontraram nos autóctones parceiros úteis, já que estes estavam em processo de sedentarização, viviam da pesca e derivados, do comércio de produtos agrícolas e animal, e tinham uma relativa organização, habitando em castros que, no caso da vertente ocidental da Serra, era significativo mas não poderia ser muito vasto, nem ter um grande perímetro de defesa amuralhada. Estes autóctones, podiam ser designados como um povo originado de culturas neolíticas e megalíticas relativamente desenvolvidas, que receberam impacto das áreas ibéricas, e que resultam da miscigenação, em diferentes proporções, dos primitivos iberos com a chegada gradual de tribos celtas. Essa miscigenação fomentou uma superioridade económica e técnica das culturas urbanas ditas ibéricas - ou levou à presença de elementos ibéricos em boa parte da Península, e é neste sentido, cultural e étnico, que se poda falar em povos ou mesmo em civilização celtibérica, a qual, em regiões rurais como a nossa, teriam, naturalmente, uma notoriedade mais reduzida. Posteriormente, a coalizão de diversas tribos e clãs com as mesmas afinidades vieram a compor conjunto de povos com interacção suficiente para se organizarem e combaterem invasões externas. São os Lusitanos, que se podem definir como um conjunto de etnias ou grupos aparentados entre si por laços variáveis de ascendência e de traços culturais, celtizados por miscigenação e por intercâmbio cultural. Nesta região faziam parte, primeiro do limite litoral sul, posteriormente do centro do litoral ocidental da Lusitânia.

Diodoro Sículo (séc. I a.C.) distingue os Lusitanos que viviam no alto dos montes de difícil acesso, daqueles do litoral, que viviam com maior conforto e urbanidade; mas assinala que os Lusitanos "são os mais fortes entre os iberos".

Compreende-se a fixação sedentária de habitantes neste local. A orografia da vertente ocidental da serra de Sintra é abrupta, com declives por vezes acentuados, excepto nas áreas que hoje denominamos Santo André e Almoçageme, onde a ocidente da serra se encontram os maiores espaços de planalto, seja com uma maior dimensão em Santo André/Rodízio, seja com uma menor dimensão na área central de Almoçageme (aliás, também no Penedo e na Azoia emergem dois esporões rochosos com pequenas plataformas horizontais, com a dimensão suficiente para aí se terem encontrado vestígios arqueológicos que demonstram uma primitiva ocupação humana com alguma permanência). O acesso fácil a água também terá sido determinante para a fixação de populações, assim como terrenos férteis que propiciariam a sedentarização. E, também factor fundamental de suporte para a fixação, a proximidade de vastos recursos de floresta, então essenciais, seja como matéria combustível para a preparação dos alimentos, seja como o recurso primordial para a construção das habitações.

 

COLÓNIA ROMANA

Quando o Império Romano consolidou o domínio da Ibéria, toda a região de Sintra se inscreveu no vasto territorium da civitas olisiponense, à qual César cerca de 49 a.C. ou, mais provavelmente, Octaviano cerca de 30 a.C., concedeu o invejável estatuto de Municipium Civium Romanorum. Os vários habitantes da região inscrevem-se na tribo Galeria, uma das antigas tribos lusitanas, adoptando nomes romanos - com especial destaque para o imperial "Lulius" -, e apresentam-se plenamente imbuídos de romanidade, nos mais diversos aspectos culturais, políticos e económicos. Mesmo aqueles que, porventura oriundos de outras regiões da Lusitania, ostentam nomes indígenas aparecem quase sempre integrados nesta sociedade profundamente romanizada. Com a romanização, esta região atravessou um longo período de pacificação, com o demonstra a presença de colonatos romanos, sobretudo agrícolas, e a integração da região na rede secundária  de estradas romanas do Império.

Com registo arqueológico, os romanos fixaram-se onde hoje é Santo André, como demonstram vestígios encontrados no início do século XX, datados entre finais do século III e finais do século IV d.C. Perto da povoação que hoje tem o nome de Almoçageme encontrava-se a colónia mais ocidental de todo o Império Romano. Descoberta no início do século, quando da abertura da estrada que liga este local à Praia Grande, só em 1985 começaram os trabalhos de escavação que vieram trazer alguma luz sobre o achado. Trata-se de uma vila áulica romana tardia, de proporções monumentais, com cerca de 400m de comprimento e 80m de largura. Possuidora de um belíssimo mosaico polícromo, o cruzamento teórico e cronológico entre os objectos recolhidos e datados, moedas e cerâmica sobretudo, leva a crer que a ocupação da vila se deu entre os séculos III e V d.C.

Esta vila, anteriormente localizada onde hoje é Sto. André de Almoçageme, é uma das maiores que se conhecem, e além dos terrenos agrícolas, incluía um vasto conjunto de edifícios, que vão desde a residência do proprietário e o alojamento dos trabalhadores, aos balneários e outras dependências ligadas à actividade agrícola, como lagares, armazéns, celeiros, estábulos e ainda uma olaria.

Estes vestígios, agora conhecidos por Vila de Santo André de Almoçageme, foram noticiados em 1905 pela publicação “Arqueólogo Português". Apesar da importância deste achado arqueológico, somente em 1985 se iniciou a exploração metódica do local, sob o financiamento da Câmara Municipal de Sintra que adquiriu os terrenos onde a Vila está inserida.

Essas escavações arqueológicas conduzidas há pouco mais de duas décadas nas imediações de Almoçageme colocaram a descoberto diversos elementos estruturais de parte de uma vila romana edificada durante o período mais tardio da ocupação romana do actual território português, ocorrido entre os séculos III e V d. C., com especial destaque para os vestígios de uma residência composta de várias divisões.

Mas apesar de ter sido só descoberto no final do século XX, é possível que alguns componentes encontrados nas suas proximidades ao longo das centúrias precedentes proviessem deste arqueossítio, embora sem uma aparente indicação da sua localização. Foi o caso, por exemplo, de uma inscrição funerária achada fora de contexto no século XVII, numa altura em que os principais centros culturais europeus votavam um novo interesse aos vestígios da Antiguidade clássica, ao mesmo tempo que se concentravam na descoberta de elementos que pudessem, de algum modo, caracterizar as especificidades nacionais, regionais e/ou locais que urgia sublinhar perante o ambiente político vivido na época.

Entretanto, o início de novecentos trouxe o achamento de um mosaico policromo e de algum espólio associado que, juntos, apontavam indubitavelmente para a presença de uma estrutura habitacional tipicamente romana.

O aparelho irregular dos muros das estruturas exumadas é constituído por cantaria de calcário da região com uma altura máxima de quarenta centímetros. Os compartimentos apresentam uma planta predominantemente rectangular, correspondendo, na sua maioria, a salas pavimentadas com mosaicos, como é característico de muitas outras vilas.

Foi ainda possível identificar a presença de dois possíveis tanques construídos em argamassa (opus signinum), um dos quais de planta igualmente rectangular e implantado no enfiamento do muro. O segundo, de menores dimensões e de planta irregular, encontra-se junto a um socalco formado por tijolos.

No mesmo perímetro da escavação foi de igual modo encontrado um forno de tijolo, a par de uma sepultura de inumação infantil.

Neste período a denominação da localidade deve ter variado de acordo com o nome do colono romano aqui estabelecido, ou dos deuses e imperadores a quem votava a sua propriedade.

 

SANTO ANDRÉ

Com o fim do Império Romano, no período das invasões germânicas, a obra histórica de Orósio e a Crónica de Idácio ainda citam o povo lusitano já romanizado, mas estes povos foram misturando-se com as vagas de invasores e colonos imigrantes.

Na nossa região, a invasão dos visigodos ( 415 D.C. ) foi sobretudo uma absorção do território com escaramuças aleatórias, rechaçando primeiro os alanos, depois os suevos, que, do norte peninsular, frequentemente faziam incursões, devastando também os territórios onde estamos inseridos. Os visigodos, vencedores dos suevos ( pelo rei Eurico, em 469 D.C. )   mais tarde substituem o Imperio Romano em decomposição, adoptando o seu sistema administrativo romano. Em 506, Alarico II, rei visigodo, reconcilia-se com os bispos católicos reunidos no Concílio de Agde e promulga a Lex Romana Visigothorum, base do célebre código jurídico que perdurou na Hispânia até o século XIII ( mais tarde, em 654, a Liber Iudiciorum — última versão do código visigótico, sob a forma que depois foi transmitida aos reinos da Reconquista ).

O arianismo dos visigodos, se bem que combatido pela Igreja de Roma ( só estariam completamente cristianizados em 589 ), permite que a primitiva igreja cristã comece a emergir e a substituir gradualmente as crenças politeístas anteriores ( os romanos mantiveram no Alto da Vigia,  na foz do rio de Maçãs, um grande santuário dedicado ao Sol e à Lua e ao culto imperial, datável dos sécs. II-III d. C ), assim como absorvendo as primitivas seitas cristãs ( prescilianismo ), e criar uma alternativa teológica ao arianismo ( esta cristianização de Roma demorou séculos: ainda em 675, no XI Concílio de Toledo e no III Concílio de Braga, procedeu-se à condenação dos "estranhos" usos litúrgicos do norte da Península, que incluíam a celebração da missa com leite ou uvas, emprego das alfaias sagradas para usos profanos e exageradas formas de veneração dos bispos portadores de relíquias, assim como a condenação dos bispos que dizem a missa sem a estola, que vivem com mulheres e castigam os presbíteros com penas corporais ).

E neste período que podemos especular com a origem do primitivo nome de Santo André à área que hoje chamamos Almoçageme, e que durante séculos foi Santo André de Almoçageme.

O nome da localidade como Santo André teria tido origem devido à existência de uma Ermida de Santo André, sobre cujos vestígios existem descrições históricas e cuja localização era em local que hoje ainda se continua a chamar popularmente Santo André.

Em 554, a entrada dos bizantinos no sul da Península, pode estar associada à devoção de Santo André. Santo André (em grego: 'Ανδρέας, transl. Andreas; século I d.C.), conhecido na tradição ortodoxa como Protocletos (o "primeiro [a ser] chamado"), é um dos apóstolos cristãos, irmão de São Pedro. De acordo com Hipólito de Roma, ele pregou na Trácia e sua presença em Bizâncio também é mencionada no apócrifo "Actos de André", escrito no século II. Esta diocese acabará por se tornar o Patriarcado de Constantinopla. André é, por isso, considerado como seu fundador. Tanto ele quanto seu irmão Pedro eram pescadores, por profissão, e segundo a tradição Jesus tê-los-ia chamado para serem seus discípulos, dizendo que faria deles "pescadores de homens" . Eusébio de Cesareia, citando Orígenes, conta que André pregou na Ásia Menor e na Cítia, ao longo do mar Negro, chegando até o rio Volga e Kiev - daí que se tenha tornado padroeiro da Roménia, da Rússia, Escócia, Ucrânia, Grécia, Sicília e do Patriarcado de Constantinopla. André teria sofrido o martírio através da crucifixão, em Patras (Patrae), na Aqueia. Embora os textos mais antigos, como os Actos de André, mencionados por Gregório de Tours, descrevem que ele teria sido atado, e não pregado, a uma cruz latina, desenvolveu-se uma tradição de que André teria sido crucificado numa cruz do tipo conhecido como Crux decussata ("cruz em forma de 'x'"), comumente conhecida como "cruz de Santo André", e que isto teria sido feito a pedido dele próprio, que se julgava indigno de ser crucificado no mesmo tipo de cruz que havia sido usada para crucificar Cristo. Uma tradição escocesa afirma que as relíquias teriam sido levadas para o país, mais especificamente a cidade que leva o seu nome, Saint Andrews; a bandeira da Escócia apresentaria a sua cruz, que, após a união da Escócia com a Inglaterra, também passaria a fazer parte da bandeira do Reino Unido.

Em Portugal existem várias localidades com o nome de Santo André, com a curiosidade de a maior parte delas se localizar no litoral. Inclusive, existe um Cabo de Santo André, no concelho de Póvoa de Varzim, onde existe uma capela junto a um rochedo chamado Penedo do Santo, que tem uma marca que acreditam ser uma pegada do próprio Santo André. Os pescadores acreditam que este santo liberta as almas dos que se afogam no mar, indo pescá-las ao fundo do mar depois de um naufrágio. A festa deste santo acontece na madrugada do último dia de Novembro, em que grupos de homens e mulheres, envolvidos em mantos pretos e segurando lampiões, vão até à ermida pela praia, entoando cânticos e no final circundam a capela, formando assim o Ponto das almas.

Santo André, o pescador de almas, faz todo o sentido que tenha tido uma ermida à sua devoção num local como o de Almoçageme. Neste local, naturalmente, associavam-se tanto a prática do cristianismo primitivo, que queria salvar as almas daqueles que ainda não reconheciam Cristo, como a salvação das almas daqueles que perto, no mar, perdiam a sua vida sem estarem redimidos.

Esta visão religiosa de Santo André terá subsistido ao longo do período de ocupação dos almorávidas, e reforçado posteriormente a sua devoção, com a reconquista e ao longo da Idade Média, já no período da nacionalidade portuguesa, na qual as viagens marítimas ocuparam um papel decisivo nos hábitos desses tempos.

 

ALMOÇAGEME

O nome Almoçageme é posterior ao período visigodo. E tem origem no domínio territorial obtido com a ocupação muçulmana, que teve início em 711-714, quando Abdulaziz (ou Abdul-el-Aziz) subjugou a Lusitânia. Durante o domínio muçulmano surgem os primeiros textos que referem explicitamente esta região e a Vila de Sintra (Xintara ou Shantara em árabe). Sintra é apresentada no século X pelo geógrafo Al-Bacr, fixada por Al-Munim Al-Himiari, como «uma das vilas que dependem de Lisboa no Andaluz, nas proximidades do mar». Outros textos assinalam-na como o centro urbano mais importante logo a seguir a Lisboa, neste território. Lisboa, a Al-Usbuna, foi durante o período de ocupação muçulmana um importante centro económico de tal dimensão que o cruzado Osberno, à data da reconquista, se lhe referiu como «o mais opulento centro comercial de toda a África e de uma grande parte da Europa».

Claramente, tal como no período romano, durante a ocupação muçulmana, Almoçageme estava integrada numa vasta região rica em produção agrícola, de grande dimensão e com forte organização admistrativa.

Como quase toda a toponímia portuguesa começada por ‘al’, o nome de Almoçageme tem, naturalmente, influência árabe. Esta influência não é algo de palpável mas é indiscutivelmente um bem cultural e histórico, uma prova viva da influência desta cultura na Península Ibérica e, neste caso, em Sintra.

Desde diversos termos ligados à economia, sobretudo à actividade agrícola, topónimos e antropónimos, os muçulmanos enriqueceram e marcaram a língua portuguesa com centenas de vocábulos. A toponímia de Sintra não é excepção a este encontro de culturas que marcou a nossa história, e da Península Ibérica em geral, durante quase cinco séculos. Assim, e segundo diversos estudos, Almoçageme tem raiz na palavra árabe al-masjid ou al-mesijide, que significa “a mesquita”. Desconhece-se, no entanto, , se existiria nesta localidade alguma mesquita que tivesse dado origem a esta toponímia. Contudo, para a denominação Almoçageme, existe outra interpretação (*), a qual, atribuindo a mesma origem islâmica, refere que o termo a considerar é al-munsagem , que significa " água que corre, os riachos". Esta interpretação é a mais coerente, evidenciando a profusão de inúmeros pequenos ribeiros que, então todos a céu aberto, corriam abaixo pela encosta ocidental da serra de Sintra.

 

Nota: texto baseado em pesquisa  integrada de diversos autores e obras de referência.

(*) Maria Teresa Caetano, Joaquim Filipe

Por aqui, éramos a tribo lusitana dos GALERIA 

 

Tabula moldurada que estaria afixada acima da entrada de um mausoléu, datável do séc. I d.C., em exposição no Museu Arqueológico de Odrinhas,Sintra

 

L(ucius) · AELIVS · L(ucii) · F(ilius) · GAL(eria tribu) · AELIANVS · H(ic) · S(itus) · E(st) / L(ucius) · AELIVS · SEX(ti) · F(ilius) · GAL(eria tribu) · SENECA · PATER · H(ic) · S(itus) · E(st) / CASSIA · Q(uinti) · F(ilia) · QVINTILLA · MATER · H(ic) · S(ita) · E(st) / L(ucius) · IVLIVS · L(ucii) · F(ilius) · GAL(eria tribu) · AELIANVS · ANN(orum) · XIIII · H(ic) · S(itus) · E(st) / L(ucius) · IVLIVS · L(ucii) · F(ilius) · GAL(eria tribu) · IVLIANVS · AN(norum) · XXV · H(ic) · S(itus) · E(st) / AELIA · L(ucii) · F(ilia) · AMOENA · H(ic) · S(ita) · E(st) //

"Lucius Aelius Aelianus, filho de Lucius, inscrito na tribus Galeria, está aqui sepultado. Lucius Aelius Seneca, filho de Sextus, inscrito na tribus Galeria, o pai, está aqui sepultado. Cassia Quintilla, filha de Quintus, a mãe, está aqui sepultada. Lucius Iulius Aelianus, filho de Lucius, inscrito na tribus Galeria, de 14 anos de idade, está aqui sepultado. Lucius Iulius Iulianus, filho de Lucius, inscrito na tribus Galeria, de 25 anos de idade, está aqui sepultado. Aelia Amoena, filha de Lucius, está aqui sepultada."

 

Cipo prismático datável do séc. II d.C., em exposição no mesmo Museu.

 

D(iis) · M(anibus) / M(arci) · VALERI(i) · M(arci) · F(ilii) / GAL(eria tribu) · GALLIONIS / AN(norum) · XXXIII / LICINIA MAXVMA / MATER · F(aciendum) · C(urauit)//

"Aos deuses Manes de Marcus Valerius Gallio, filho de Marcus, inscrito na tribus Galeria, de 33 anos de idade. Licinia Maxuma, a mãe, mandou fazer."

 

ALMOÇAGEME e os ITENERÁRIOS DAS VIAS ROMANAS

 

Este itinerário tenta fixar no mapa de Portugal os pontos de passagem das vias romanas, de modo a criar rotas de viagem. Para além da evidência arqueológica, existe uma cópia medieval do Itinerário de Antonino ou Itinerarium Antonini Augusti, originalmente escrito no séc. III, indicando as estações de paragem ao longo da via (mansiones) e respectivas distâncias medidas em milhas. Nesta página são apresentadas propostas de traçado para os 11 itinerários respeitantes ao actual território português, bem como os muitos outros itinerários da extensa rede viária romana que cobrem a totalidade do território Português. Para a conversão da milha romana em quilómetros, convencionou-se que uma milha equivale a 1480 m. Os itinerários aqui descritos estão em constante evolução à medida que novos vestígios são descobertos e novos estudos publicados.

 

Óbidos (EBUROBRITTIUM) - Lisboa (OLISIPO)

Continuação da via romana Coimbra-Lisboa atravessando os concelho de por Leiria, Óbidos, Alcobaça, Mafra e Sintra. De Eburobrittium a via continuava para Sul seguindo aproximadamente a EN114 que a grosso-modo acompanha a antiga linha de costa, mas também é possível que uma outra via se dirigisse a Vale de Canada no Cadaval. seguisse pelo caminho mais curto atravessando o Rio Arnóia na Ponte dos Ingleses em A-dos-Negros, continuando por Casais da Gracieira, Casal do Queijo e a leste de Carvalhal até reencontar a anterior em Vale de Canada.

Variante para Lisboa pelo litoral:

A linha de costa na antiguidade seguia por Ferrel (Lajido e Cruz das Almas), Atouguia da Baleia (por Burnela, Porto Salgado, Porto dos Lobos, Alcoentras e Consolação), sendo Papoa, Baleal e Peniche na época, ilhas junto à costa com função de entrepostos no apoio ao comércio por via marítima. Em Peniche há vestígios de fabrico de ânforas nos fornos romanos do Morraçal da Ajuda e ainda outros vestígios em torno da Igreja de Nossa Senhora da Ajuda e dos edifícios na Rua da Liberdade certamente relacionados com essa função de entreposto. Desse modo é possível que existisse uma ligação entre Óbidos (Eburobrittium) e o seu porto marítimo em Atouguia da Baleia, seguindo depois junto à costa até ao Vicus de Faião em S. Miguel de Odrinhas. Partindo de Óbidos, a via seguiria por Pinhal, Sobral da Lagoa, Amoreira de Óbidos, Casais da Ladeira, continuando pelo caminho carreteiro que atravessa a Serra d´El Rei até Reinaldos e Casal das Figueiras.

Atouguia da Baleia (porto romano poderia ser em Porto de Lobos ou em Porto Salgado)

Travessia do rio Toxofal, antigo rio Gaia (junto à villa de Caio Júlio Lauro na Qta. da Moita Longa)

Miragaia, Lourinhã

Marteleira, Miragaia

S. Domingos da Fanga da Fé, Encarnação

Paço de Ilhas, St. Isidoro (calçada com 100 m e Ponte no lugar do Crato; limite N do território Oliponense)

Ericeira

Ponte da Carvoeira sobre o rio Lizandro

Assafora, S. João das Lampas (segue próximo da villae de Areias e Amoreira)

Eventual ligação a S. João das Lampas passando em Cortesia, Ponte Romano?-Medieval de Catribana sobre a ribeira de Samarra ou de Bolelas, subindo pela calçada chamada «Caminho do Castelo» até S. João das Lampas; villae em Cornadelas/Ermidas, Torres/Casal de Pianos; casais em Mato Tapado, Sete Moios, Parede Bem Feita e Pombal/Camalhão)

S. Miguel de Odrinhas, S. João das Lampas (espólio no Museu Arqueológico de Odrinhas; calçada para Faião)

Faião (Vicus), Terrugem (depois de Lisboa esta seria a maior povoação do território Oliponense; outra possível localização para CHRETINA; calçada)

Montelavar (vestígios de pedreiras; villa em Barros do Casal Silvério)

Pêro Pinheiro (villa na Granja dos Serrões; vestígios em Casal das Vivas e Lameiras; continua por Palmeiros, Sabugo e junto da villa da Granja de Santa Cruz, onde há vestígios da via)

Belas (Barragem Romana junto à ribeira de Carenque que abastecia Lisboa pelo Aqueduto Romano em Mina; calçada já desaparecida em Machado/Rio do Porto; troço de calçada com cerca de 600 m entre a ribeira do Jamor e o pórtico quinhentista da Quinta do Bom Jardim em Venda Seca; Pedreira Romana em Colaride e Minas Romanas no Monte Suímo)

Falagueira, Amadora (villa da Qta. da Bolacha a poente da ribeira da Falagueira)

Lisboa (OLISIPO)

 

Ligações a Sintra a partir do Vicus de Faião:

Terrugem (habitat em Pedrões; segue por Vila Verde junto da Villa de Abóbodas, e Lourel)

Sintra (vestígios na Pr. da República/Rua de Gil Vicente)

Ligação Sintra-Belas e Sintra-Caxias:

De Sintra partiria uma via para SE passando na necrópole da Rua da Ferraria, Calçada dos Clérigos e Calçada da Penalva/Trindade, (Villa em Corrais do Chão) seguindo até à Ponte Romana? de Albarraque em Rio de Mouro, podendo continuar para Belas ou rumar para sul em direcção ao Rio Tejo em Caxias, passando junto da Villa de São Marcos e já no concelho de Oeiras, por Casal de Cabanas, S. Miguel, Leião, Leceia, Laveiras e Caxias)

Ligação a Sintra-Colares:

Sintra (segue por Galamares e Mucifal; estação na Qta. da Areia e villa no Lugar do Mercador)

Ponte Romana? da Várzea de Baixo, Colares (3 arcos)

Colares (templo romano; necrópole no Pinhal da Nazaré; calçada entre Colares e a Villa de Santo André de Almoçageme passando na Qta. do Corvo)

Ligação a Sintra-Cascais:

Sintra

Alcabideche, Cascais (Villae no Alto da Cidreira e Vilares)

Areia, Cascais (povoado de Casais Velhos, junto ao Parque de Campismo)

 

 

 

ERMIDA DA NOSSA SENHORA DA PENINHA ( Sec. XVI )

 
« Fica na serra de Sintra, mas muito distante da vila, o lugar em que se encontra o pequeno ermitério, a origem do qual data de tempos imemoriais. É próximo ao Cabo da Roca e assenta num dos píncaros da serra.
 
Este sítio é visitado pelas pessoas que vão a Sintra, como um dos sítios celebrados , e bem perto se encontra um grande dolmén, o maior que se conhece em Portugal, denominado o dolmén de André Nunes. Do ermitério o panorama que se desfruta abrange o oceano e é um espectáculo imponente" »
 
Revista Ocidente, 1884
 
« Da Imagem de nossa Senhora da Peninha, no termo de Cintra
Uma pastora surda-muda perde uma ovelha e, ao procurá-la, encontra, no alto de um rochedo, uma linda menina que lhe indica onde encontrar seis pães. A pastora adquire a fala e vai ter com sua mãe, contando-lhe o sucedido. Encontram depois os pães no local apontado e a população da aldeia, tomando tais feitos como milagres, dirige-se ao local onde a pastora encontrara a menina, crendo que esta seria Nossa Senhora. Lá encontram, numa fenda duma rocha, uma imagem da Virgem, que levam para uma ermida ali perto. A imagem, no entanto, por três vezes regressa ao local de origem, sendo, por isso, construída nova capela no rochedo. »
FonteAGOSTINHO DE SANTA MARIA, Fr., Santuário Mariano, Alcalá, Imperitura, 2007 [1711] , p.tomo II, parte I, Ch. XVI, pp. 53-59
 

 

CONVENTO DOS CAPUCHOS

Painting by W. H. Burnett (XIXth century)
 
O Convento dos Capuchos foi mandado construir em 1560 por D. Álvaro de Castro, conselheiro de Estado de D. Sebastião e vedor da Fazenda, em resultado do cumprimento de um voto de seu pai, D. João de Castro, quarto vice-rei da Índia. O Convento de Santa Cruz da Serra de Sintra surgia, assim, num lugar isolado e inóspito, cujas condições naturais à época da sua fundação, tiveram decerto forte influência na escolha da sua localização. 
O convento capucho de Sintra é um dos múltiplos exemplos da religiosidade pietista do século XVI em Portugal e ficou conhecido pelo extremo da sua pobreza de construção. De dimensões reduzidas, com celas e dormitório revestidos a cortiça e uma capela cuja abóbada se forma na própria rocha, motivariam a afirmação de William Beckford que em 1787 relatava a sua visita ao Convento dizendo: “…seguimos durante várias milhas um atalho estreito sobre uma colina selvagem e deserta que nos levou ao Convento dos Capuchos, que à primeira vista corresponde à imagem que se tem da morada de Robinson Crusoé” (William Beckford e Portugal. A viagem de uma paixão. Catálogo de Exposição. Palácio Nacional de Queluz, 1987, p. 159). 
O Convento materializa o ideal de fraternidade e irmandade universal dos frades franciscanos. Os que o habitaram integravam-se na Província da Arrábida, da Ordem dos Frades Menores Regulares e Observantes.  
A portaria do convento, um simples telheiro com tecto e traves de madeira forradas de cortiça, constitui justa expressão da pobreza e contenção que norteou esta construção desprovida de elementos decorativos. 
Habitado ainda nos finais do século XVIII, o Convento de Santa Cruz dos Capuchos terá sido abandonado em 1834, com a extinção das ordens religiosas que o regime liberal determinara.

 

CONVENTO DE SANTA ANA DO CARMO

O Convento de Santa Ana do Carmo situa-se em plena serra de Sintra, entre os lugares de Gigarós e Boca da Mata, freguesia de Colares. Seguindo a estrada que liga Monserrate a Colares, pela serra, e ao chegar à povoação da Eugaria, surge-nos uma estrada de calçada à esquerda com a indicação Gigarós. Tomando-a, cerca de mil metros daqui avistamos o portão principal da quinta onde foi edificado o antigo Convento de Santa Ana do Carmo da Ordem dos Carmelitas Calçados, actualmente propriedade privada.
Em 1389, D. Nuno Álvares Pereira manda construir o Convento do Carmo, em Lisboa. Para este convento vieram religiosos do Convento de Moura, solicitados e indicados pelo próprio D. Nuno. Em 1423, realiza-se o primeiro Capítulo Provincial em terras de Portugal. Elaboram-se os primeiros Estatutos, que foram aprovados por D. João I, em 1424.
O Convento de Santa Ana de Colares será o terceiro convento da ordem carmelita fundado em Portugal, porém, o segundo convento fundado em Sintra, depois da tentativa falhada de construção de um primeiro cenóbio nos arredores da vila.(1)
André Manique
(1) Este primeiro cenóbio foi construído próximo de Janas, em terrenos que hoje pertencem a uma caríssima amiga, a Ana B., que mantém os restos arqueológicos do mesmo devidamente preservados.
 
Post Scriptum : com pouca distância uns dos outros, quase em linha recta, a Ermida da Peninha, o Convento dos Capuchos e o Convento de Santa Maria do Carmo, hoje todos desactivados, significam a permanência religiosa da Igreja Católica num local - o extremo ocidental da Serra de Sintra, que coincide com a freguesia de Colares - que no passado remoto foi local de cultos fenícios, celtiberos, romanos e do cristianismo primitivo visigótico, de que permanecem vestígios arqueológicos no Promontório da Roca, no Porto Touro e no Alto da Vigia, junto à foz do Rio das Maçãs. Não sendo caso único - existem referências equivalentes noutros promontórios localizados na Europa, sobretudo na Irlanda e em Finisterra - , é de referir a concentração inusitada de diferentes cultos esotéricos e religiosos que se sobrepõem ao longo do tempo.

 

TEMPLO ROMANO DO ALTO DA VIGÍA

 

( escavação arqueológica, Alto da Vigia,  entre a Praia Pequena e a foz do Rio das Maçãs )

TEMPLO ROMANO DO SOL E DA LUA

« Este antiquíssimo culto astrolátrico perpetuou-se até épocas mais recentes, nomeadamente no período da dominação romana.
Já no término de Colares, no Alto da Vigia, junto à ribeira do mesmo nome, na foz do rio de Maçãs, existiu outrora um grande santuário dedicado ao Sol e à Lua e ao culto imperial, datável dos sécs. II-III d. C., mas de que no séc. XVI já só se viam esparsas ruínas. Na época, o recinto circular do santuário ( talvez um templo, talvez um simples témenos, ou espaço sagrado ao ar livre ) erguia-se sobre uma elevação rochosa que avançava pelo mar, até aos 40 metros de altitude, e que assim constituía um pequeno promontório.
O monumento é conhecido desde 1505 através da descoberta, por Valentim Fernandes ou Valentim de Morávia, de três aras consagradas a Soli et Lunæ, Soli Æterno Lunæ e Soli Æterno, que descreve como sendo “três colunas de pedra cortadas em forma de prisma, com uma grande quantidade de letras (…) incisa nos respectivos pedestais” e que se encontravam implantadas nos restos de uma forte estruturA. Valentim Fernandes foi um tipógrafo e coleccionador de origem germânica ( Morávia), amigo de Dürer, que se estabeleceu em Portugal em finais do séc. XV, entrando ao serviço da rainha D. Leonor, mulher de D. João II. Foi um dos mais importantes tipógrafos da sua época.
O humanista André de Resende estudou-o na sua célebre obra “De Antiquitatibus Lusitaniæ”, publicada em 1593 (mas composta trinta anos antes): “Junto ao sopé da serra, mesmo no cimo do promontório, que é cortado abruptamente sobre o oceano, existiu outrora um templo consagrado ao Sol e à Lua, do qual agora apenas existem ruínas nas areias do litoral e cipos, alguns com inscrições reveladoras da antiga superstição.” (8, p. 98).
De acordo com André de Resende, lê-se na primeira inscrição: “Ao Sol e à Lua dedica Céstio Acídio Perene, Legado Augustal, Propretor da província da Lusitânia”. Na segunda inscrição lia-se: “Ao Sol Eterno e à Lua, pela eternidade do império e pela boa saúde do imperador Gaio Septímio Severo, Augusto e Pio, e do imperador César Marco Aurélio Antonino, Augusto, Pio… César, e de Júlia Augusta, mãe de César, dedicam Druso, Valeriano Celiano… e Quinto Júlio Saturnino e António…” André de Resende noticia ainda “um outro cipo enorme, que tem para cima de trinta linhas em letra bastante pequena, mas com o desgaste do tempo e com a água do mar tornou-se de uma tal aspereza que, na primeira linha, a custo se reconhecem quatro letras.”
O sábio humanista prossegue: “É aqui o local onde os que fizeram publicar na Alemanha As Inscrições da Antiguidade Sagrada dizem ter sido desenterradas três colunas quadrangulares numa das quais anunciam estar contido o vaticínio da Sibila: “… Voltar-se-ão as pedras e com as letras ordenadas em linha…” Penso que esta profecia é uma mentira e que as três colunas quadrangulares são os três cipos, realmente enormes, de que falei. Eu soube de facto que Valentim da Morávia, o defensor da história, homem de bem e negociante famoso, foi tão ignorante do latim que facilmente poderia ser enganado por um impostor qualquer (…)”.
Esta profecia, ou inscrição sibilina, constaria da seguinte legenda: “SIBILL. VATICINIUM OCCI | DIIS DECRETVM | VOLVENTVR SAXA LITERIS ET ORDINE RECTIS | CVM VIDEAS OCCIDENS ORIENTIS OPES. | GANGES INDVS TAGVS ERIT MIRABILE VISV | MERCES COMMVTABIT SVAS VTERQ. SIBI. | SOLI AETERNO | AC LVNÆ DECRETVM” . A inscrição, e a sua tradução, foram sendo alteradas por vários autores. Frei Bernardo de Brito, na sua “Monarquia Lusitana” (3, Livro I, Cap. XII), traduzia do seguinte modo: “Será cousa maravilhosa ver o Rio Ganges, o Indo e o Tejo comunicar entre si as riquezas que cada um cria”. A suposta profecia sibilina vaticinaria, assim, o futuro Império Português do Oriente… à distância de vários séculos! Apesar de desmentida por vários estudiosos, a verdade é que os monjes jerónimos do convento de Nossa Senhora da Pena ainda no séc XVIII divulgavam o mito, de acordo com o relato de John D. Breval, que viajou em Portugal e Espanha por três vezes entre 1708 e 1716 .
O único testemunho visual do santuário que chegou aos nossos dias ficou a dever-se a Francisco de Holanda, que o desenhou de forma provavelmente imaginativa. Aquela figura cimeira do Renascimento português conhecia bem os arredores de Sintra, já que desde jovem os percorrera na companhia do Infante D. Luís, Duque de Beja, filho segundo do Rei D. Manuel I. Numa dessas expedições de antiquário, por ele próprio recordada e certamente realizada no Verão de 1543, ano em que a corte de D. João III fez a sua primeira estada na vila, o Infante mandou-o chamar a Lisboa para irem juntos examinar as estranhas ruínas descobertas alguns anos antes .
Francisco de Holanda incluiu o desenho do santuário na obra “Da Fábrica que Faleçe ha Çidade de Lysboa”, em 1571, e descreveu o santuário como “hu çirculo ao redor cheo de çipos memorias dos Eperadores de Roma” . Tratar-se-ia de um recinto circular implantado sobre uma plataforma de terra, sobre a qual se distribuíam 16 aras prismáticas, organizadas a espaços regulares; ao centro vê-se um disco solar raiado, que talvez tivesse sido feito em mosaico, parecendo ter à sua esquerda um crescente lunar. Todavia, não é de excluir a hipótese de o desenho de Francisco de Holanda ser apenas aproximativo: as aras poderiam ser simples bases, ou socos, de uma colunata ou de estátuas, e ser apenas em número de doze, o que permitiria supor um carácter astrológico do santuário.
Referindo-se a este importante santuário da época romana – que sinalizaria talvez um espaço sagrado muito anterior – Cardim Ribeiro sublinha: “Estamos claramente perante uma intencional forma de sincretismo entre um culto de cariz astral e o culto imperial, operada num santuário carregado de simbolismos pela sua singular localização geográfica e, porventura, também herdeiro de remotas tradições religiosas regionais, quer ligadas ao ciclo solar, quer à ancestral deusa lunar e salutífera que, de noite, vaguearia pelas penedias e pelos densos bosques do monte Sagrado, da Serra da Lua” ».
in Portugal Romano
 

 

PORTO TOURO

 

 

Âncora de dois orifícios recuperada na Guia (Cascais).
 
 
 
Imediatamente à esquerda do Cabo da Roca, numa área que abrange a foz da (hoje) pequena Ribeira do Touro, apesar de administrativamente estar actualmente em terrenos cascaenses, é de toda a propriedade associar esta pesquisa histórica do Porto Touro ao promontório da Roca, nomeadamente à ocupação romana deste território. Vejamos o que sobre  esta área está publicado.
 
«  PORTO TOURO , Espigão das Ruivas – O Porto de abrigo
 
 A possibilidade de interpretar em sentido análogo o sítio de Espigão das Ruivas, uma instalação de pequena dimensão, sobre um promontório estreito nas imediações do Cabo da Roca, com vestígios de utilização em época pré-romana e romana [G. Cardoso(1) 1991].
 
Os trabalhos ali realizados revelaram a presença de uma invulgar estrutura de escassa entidade, associada a abundantes vestígios de fogo. A dimensão da plataforma, mesmo atendendo à erosão a que teria sido sujeita, e a extensão do edificado não parecem permitir uma qualquer finalidade residencial do local, para além do mais, absolutamente agreste para uma fixação humana de carácter permanente. Como é óbvio, no Espigão das Ruivas não teria existido uma torre de sinalização com as características das conhecidas para a foz do Guadalquivir ou a Coruña ou mesmo para a presumida do estuário do Sado, apesar da sua proximidade relativamente ao Cabo da Roca que seria por certo um acidente geográfico merecedor de sinalização. Constitui porém, um indicador de que, para lá das grandes torres de sinalização, poderiam ter existido também vários pequenos pontos de sinalização que auxiliavam a navegação atlântica. A sua identificação e estudo poderão constituir aliciantes campos de investigação e a potencial confirmação da relevância desta actividade.”
 
(1)      Guilherme Cardoso – Iniciou em 1972, a inventariação dos sítios arqueológicos do concelho de Cascais; foi responsável, desde 1975, por diversas escavações arqueológicas, sendo de destacar as escavações que dirigiu em colaboração com José d’Encarnação, na área da freguesia de Alcabideche: Espigão das Ruivas (Biscaia), Miroiços (Malveira), Vilares (Murches), Alto do Cidreira (Carrascal de Alvide), Meroeiras (Abuxarda), Igreja de S. Vicente de Alcabideche, necrópole visigótica de Alcoitão, Zabrizes (Bicesse) e Casal Lobeira
Espigão de Ruivas – O Templo dedicado ao Sol e à Lua?
 
“Em Cascais, no local do Guincho velho, admite-se a existência de um antiga estrutura de sinalética náutica. Trata-se do sítio arqueológico do Espigão das Ruivas (Idade do Ferro/período Romano),inicialmente interpretado como um lugar sagrado de culto ao sol e à lua, por ter registado vestígios de uma antiga estrutura pétrea, conservando uma gravura representando um touro. 
Contudo, tendo em conta a proximidade a um lugar com o topónimo de “Porto Touro”, a reduzida dimensão da sua planta circular e os restos de carvões aí verificados, não será de excluir a hipótese de se tratar de um antigo farol de apoio à navegação de entrada no referido porto de abrigo (Ana Margarida Arruda, 1999/2000). O sítio registou a ocorrência de cerâmica diversa, nomeadamente sigillata, uma argola de bronze e um anel, além de uma sepultura violada de tipo “cista”.
Ricardo Soares (2008), Tartessos, um povo do mar. Génese da navegação, técnicas de construção e embarcações mediterrâneas pré-romanas.
 
Segundo alguns autores, identificou-se um possível “farol” (ARRUDAe VILAÇA 2006) no esporão do Espigão das Ruivas (CARDOSO 1993), pelo que a âncora em pedra de dois orifícios agora recolhida permite supor que Cascais, inserido no território olisiponense, oferecia as condições geográficas ideais para a sustentação de pequenos pontos de apoio à navegação, contribuindo para a afirmação dos contactos de índole comercial entre o Norte Atlântico e o Oriente Mediterrânico, onde o “hinterland” tinha uma posição de charneira.
O tipo de navegação praticado no litoral português no período em que se centra esta notícia não deveria ser diferente do praticado no Mediterrâneo, tal como viria a acontecer mais tarde, durante a Época Romana. Haveria, no entanto, algumas adaptações às técnicas náuticas utilizadas para fazer frente às particularidades de uma costa naturalmente muito recortada. Temos que ter em conta alguns aspectos fundamentais nessa análise. Primeiro, as alterações à linha de costa, os avanços e os recuos. Um segundo aspecto, a existência de alguma instabilidade climática, tal como tem sido avançado em estudos recentes (SOARES 1997), e reafirmado por outros investigadores (ARRUDA e VILAÇA 2006), o que afectaria as condições meteorológicas e oceanográficas que hoje conhecemos, traduzindo-se na diminuição do efeito upwelling costeiro (o que determina a não existência da nortada e das correntes). Por fim, um dos fenómenos com que os navegantes se depararam terá sido o das marés, cuja amplitude no Atlântico era impressionante perante a sua quase inexistência no Mediterrâneo. Um dos problemas levantados à navegação era o do acesso aos portos, dificultado em muitos casos durante a baixa-mar, pelo que a construção de infra-estruturas portuárias era de difícil concretização, recorrendo-se na maioria dos casos a portos naturais, tal como viria a suceder no período romano.
 
A navegação costeira e de altura seria assegurada por embarcações não muito distintas daquelas utilizadas no Mediterrâneo. Partindo das poucas informações transmitidas pelos autores clássicos como Pseudo Scilax, Heródoto e Estrabão, e pelo estudo iconográfico dos fragmentos cerâmicos exumados nas escavações da Rua dos Correeiros, em Lisboa, e do Almaraz, em Almada (ARRUDA e VILAÇA 2006), os Gauloi e as Hippoi deveriam ter sido as naves utilizadas com maior frequência na navegação costeira e em altura, e os barcos de pele e as canoas monóxilas na navegação costeira e fluvial.
In Portugal Romano
 (António Carvalho e Jorge Freire [Câmara Municipal de Cascais]
 

 

 

O PROMONTÓRIO DA ROCA E A ERMIDA DE SÃO SATURNINO
 
Encontramos na terminologia muçulmana bastas referências ao relacionamento espiritual de muitos locais desta região de Sintra.
 
Almoçageme (Almassjid, ou a mesquita)
Azóia (Azauia, ou lugar de oração)
Atalaia (lugar alto de onde se exerce vigilância)
Albarraque (Albarrak, ou o brilhante)
Algueirão (Aljairan, ou as grutas
Bensafrim (Ben Safarin, ou lugar dos feiticeiros),
Bobadela (Bu abdallah, ou filho do escravo de Deus)
Caneças (Kanissa, ou igreja) 
Frederico Mendes Paula in Aventar
 
Essas relações vêm do princípio dos tempos da ocupação humana organizada, antecedendo muito a nacionalidade  e a religião cristã, hoje dominante. Apresento a relação espiritual de três locais de Colares com a procura do divino. Os textos resultam de investigação académica, arqueológica e histórica, publicadas no Portugal Romano. Começo pela mais notória : o Promontório da Roca e a origem da ermida de São Saturnino. 

 
« Sobre o cabo da Roca e a escassos metros da ermida de Nossa Senhora da Peninha, situa-se a ermida medieval dedicada a São Saturnino – conhecido em Espanha como San Serenín, San Serní, San Cernin, San Zadornil, Sant Sadurní, San Sadurniño ou, em galego, Sam Sadurninho – que constitui a mais antiga cristianização do sacro promontório da Roca. 
Para alguns autores, esta invocação de São Saturnino poderia indiciar a existência, naquele local ou nas proximidades, de um antigo templo dedicado ao deus romano Saturno. Trata-se de uma hipótese até hoje sem qualquer comprovação arqueológica, mas certamente interessante, sobretudo se relacionada com o antecessor semítico de Cronos/Saturno, o deus Baal (título que significa “Senhor” ou “Deus”, equivalente ao hebraico Adon, “Senhor”, e Adonai, “meu Senhor”), que disputou com Yahvé a primazia das antigas crenças judaicasEntre os fenícios de Cartago, o grande deus púnico Baal-Hammon representava o princípio masculino da luz, do fogo e do calor, mas também da fertilidade agrícola e da renovação das energias, sempre associado e muitas vezes representado por um touro, que lhe era consagrado e sacrificado; e, numa “coincidência” que poderá ser muito mais do que isso, o touro representa um papel central na hagiografia de São Saturnino. (1)
Saliento, também, que o Baal púnico venerado em Cartago e em toda a sua zona de influência era usualmente representado através de um crescente lunar, a que por vezes se associava um símbolo do sol, assim figurando em inúmeras estelas votivas estudadas no norte de África. Ora, esta aparente ligação com as astrolatrias solares e lunares na serra de Sintra, de origem pré-histórica, sugere a hipótese de as populações fenício-púnicas as haverem adaptado aqui ao seu próprio universo religioso (2); mais tarde, os povos romanos tê-las-iam por seu turno submetido a um outro processo de interpretatio, assegurando assim a revivescência actualizada de cultos imemoriais.
Parece-me desnecessário frisar que os bem conhecidos contactos entre a Península Ibérica e o mundo mediterrânico, a partir do período do Bronze final, se desenvolveram extraordinariamente após o séc. VIII a.C., com os navegadores fenícios a estabelecer trocas comerciais regulares através de circuitos marítimos, fluviais e terrestres. A presença fenícia, e mais tarde púnica, está bem documentada nos grandes rios da fachada atlântica peninsular, na zona dos estuários do Sado e do Tejo, bem como na região costeira do Mondego ao Douro, locais largamente frequentados por populações de origem oriental em busca dos ambicionados recursos metalíferos.
Por outro lado, a deusa Ishtar-Astarté, a Tanit dos cartagineses e a Astoret da Bíblia, constituía a contrapartida feminina de Baal, sendo o crescente lunar um dos seus atributos.Protectora e estrela-guia de marinheiros e viajantes, o seu culto foi levado a todos os locais por onde os fenícios passaram ou se instalaram, sendo especialmente venerada em templos e grutas situados sobre os altos montes e falésias.
 
A possibilidade de as populações fenícias e púnicas terem (re)sacralizado a serra de Sintra e o seu promontório antes da dominação romana fora já levantada por Leite de Vasconcelos: “Se o culto da Lua na Serra de Sintra provém já de epochas mais remotas do que aquella de que estou tratando, ou se ha de ver-se nelle influencia phenicia, eis o que não posso decidir. Não seria para estranhar que os Phenicios, povo eminentemente navegador, ahi tivessem um santuario com a invocação da Lua, como de certo os tinham no Sacro Promontorio em honra de outros deuses: em tal caso o respectivo nome da divindade seria Astarte, deusa semitica da lua e do oceano (…)” (11, vol. II, p. 218); ou a divindade Baal/Saturno, como acontece precisamente no extremo sul-ocidental da Península, na zona dos cabos de Sagres e S. Vicente, ou mais a norte, nas Berlengas. 
O cabo da Roca não poderia, pela sua clara importância geográfica, ter deixado de suscitar forte temor e veneração aos marinheiros fenícios e cartagineses que por ele passaram, a caminho do Norte; a hipótese de ali terem erguido um local de culto dedicado a Astarté ou a Baal-Saturno é, por isso, muito verosímil. Paulo Pereira salienta, a este propósito: “É certo que o local, de onde se avista todo o arco da barra do Tejo, deveria ter sido precedido por um santuário pré-histórico cuja memória se perdeu nesta humilde capela. O invulgar orago remete para cultos saturnianos, em tudo semelhantes aos que se podem encontrar nos cabos de Sagres e de São Vicente, estes dedicados também a divindades saturnianas ou ligadas ao Tempo, entendido como ciclo e sucessão vital face à disposição astral dos corpos celestes – neste caso o Sol poente (Baal, Hércules, Kronos, Saturno). Será pois uma manifestação típica dos cultos das finisterras, neste caso a do próprio cabo da Roca, que dali se avista” (7, vol. V, p. 93).
Eis uma hipótese a considerar, e que só futuras investigações poderão confirmar ou infirmar.
(1) o touro continua a ser um elemento presente até aos nossos dias, anteriormente sacrificado, hoje só corrido, nas festividades populares da Romaria Anual da Santíssima Trindade do Penedo.
(2) poderemos encontrar nesta devoção a ancestralidade da referência à serra de Sintra como o  Monte da Lua.
 
Lugar sagrado desde tempos imemoriáveis, sabe-se que no século XII já existia por lá a ermida de São Saturnino, por quanto D. Paio Peres, signifer e companheiro de D. Afonso Henriques, depois da morte do monarca, solicitou a D. Sancho I autorização para se isolar na dita ermida.
Passada ao estado de abandono no segundo quartel do séc. XVIII, virá a ser habitada, já no séc. XX. 
Os caseiros da propriedade habitaram a ermida de S. Saturnino até aos anos 60, tendo sido depois convertida em palheiro e curral. »
 
Bibliografia
Ermida de São Saturnino: breve nota de uma escavação arqueológica na Serra de Sintra/Arqueologia Medieval (1997)
Fotos: projecto RUIN’ARTE
http://ruinarte.blogspot.com/2009/11/ermida-de-s-saturnino-serra-de-sintra.html
Fonte: http://www.celtiberia.net/articulo.asp?id=2943#ixzz1CBJSBIsc
In Portugal Romano

 

 FESTA DA NOSSA SENHORA DA GRAÇA

 

Tal como sobre a centenária Corporação dos Bombeiros de Almoçegeme, a historiadora Maria Teresa Caetano, agora em conjunto com Joaquim Leite, produziu uma edição, completa e definitiva, sobre a origem e usos da Festa da Nossa Senhora da Graça, que têm lugar em Almoçageme desde 1758. Adquirir o livro é a melhor forma de conhecer profundamente esta festa, mista de religiosa e profana, e com procedimentos particalares que a permitiram subsistir continuamente até aos dias de hoje. Neste artigo apresentamos, retirado do  livro, a origem desta tão antiga  festividade.

« Num reconhecido júbilo pelo facto de o violento sismo do dia de Todos-Os-Santos de 1755 não ter provocado senão danos materiais, deu-se início à construção, muma terra de semeadura, de uma Igreja consagrada a Nossa Senhora da Graça [ ] a documentação subsistente esclarece que o templo " teve.seo principio em o anno de 1758 feitos Com esmolas dos moradores do ditto logar, e dos nasionais delle, existentes em a Cidade de Lixbo e de outras pessoas deVOtas, sendo seo director, administrador, e maior de Votto Joze Gomes da Costa". Dez anos depois, celebrou-se a primeira missa no novel templo, a 15 de Agosto. E, alguns meses mais tarde, a administração da Igreja foi entregue - por Maria da Apresentação, viuva do administrador que fora "Deus servido chamalo para si á tempo que a ditta Igreja, se achava já coberta de telhado, e fechada de portas " - aos habitantes da aldeia conforme se pode ler no citado "Livro da Receita e despeza das obras de Nosa Senhora da grasa ". E a belíssima imagem da Virgem invocada foi, segundo a tradição oral, oferecida como pagamento de uma promessa de um conterrâneo que em viagem marítima, do Algarve para Lisboa, se salvou de um temporal à entrada da barra do Tejo.

[]

Com a Graça da Senhora , deu-se início , ainda no séc. XVIII, numa terra aonde não acudia qualquer romagem, à festa em seu louvor : " Devesse solenizara Senhora da Graça no primeiro Domingo de outubro Dominga Snatissimo Rozario [] O fervor mariano, espelhado nesta renovação de fé,, acabaria por ditar o abandono e sequente ruína da ermida manuelina devotada ao apóstolo André, que estava a cargo do "Ouvidor das Terras da Raynha", da qual apenas subsiste gracioso cruzeiro maneirista. 

Pouco se sabe, no entanto, acerca dos promórdios dos festejos pois a - rara - documentação subsistente não é esclarecedora quanto à estrutura desta celebração mariana, nem , tão pouco, nos informa acerca de uma das mais interessantes particularidades desta que se subsume na razão de ser feita apenas por indivíduos ( recém ) casados, que, por um dois anos depois de celebrado o matrimónio, são convidadios a "fazer a festa". Esta participação  assumia-se - e assume-se ainda hoje - como verdadeiro "rito de passagem", porquanto a festa da Nossa Senhora da Graça era, na verdade, pela sua estrutura organizativa, a assunção da "maioridade" plena dos jovens casais. [ ] Outro aspecto a salientar prende-se com a necessidade de garantir a sua continuidade ao obter-se, ainda mesmo antes do término do evento, a formação de uma comissão para o ano seguinte. E poderá, talvez, radicar aqui uma das razões pelas quais esta festa - segundo se diz- nunca tenha ficado por fazer.

De igual modo eram formulados os convites ao juiz e à juíza da festa, por norma pessoas social e económicamente bem posicionadas, que tinham como função presidir aos festejos - em particular, à procissaõ -e, em contrapartida, ficavam "obrigados" a " dar uma esmola gorda". [ ] Assim, no sábado, os festeiros iam - e vão ainda - à casa do juiz entregar o pendão e a medalha e , seguidamente, à da juíza oferecer uma outra medalha. E, no Domingo, os festeiros acompanhados pela banda e por homens que transportam as gigas, forradas com " lindos lençóis ou toalhas de linho e enfeitadas com flores naturais, iam à casa do juíz e da juíza para os cumprimentar " e conduzir à Igreja para, em lugar destacado, presiderem à missa e, depois, à procissão, na qual o juíz - acompanhado pela juíza - carreava a bandeira da Senhora. As gigas eram benzidas durante a missa e dali levadas para o sítio do arraial onde se vendiam os bolos. Nesta altura, os bolos da festa "não eram comprados, eram os festeiros que levavam o trigo ao moleiro. Com a farinha moída faziam os bolos da festa e a cada fornada terminada era lançado um foguete " e aqules que andavam nos campos, a trabalhar, "sabiam que tinham saído mais bolos".

Por este tempo a festa era " feita pelos fazendeiros, depois é que começou a ser feita pelos que andam à jorna ", de modo a que os eventuais prejuízos causados pela chuva outonal que, muitas vezes, "estraga a festa" fossem prontamente cobertos. Era também frequentes festeiros competia, para além da organização do evento, zelar pelo "ouro" da Nossa Senhora da Graça. Este "ouro" , bem como os excedentes monetários da festa, era guardado num cofre de madeira chapeado e ferrado - a burra - que era, secretamente, entregue a um dos festeiros. A burra tinha três chaves que eram distribuídas por outros antos festeiros, garantindo-se. deste modo, que a abertura do cofre só era possível na presença daqueles elementos da comissão.» 

FORTE DA ROCA

« Localizado ligeiramente a Sul do Cabo da Roca, no sítio do Alto das Estradas, este forte é um dos mais desconhecidos monumentos militares da região de Sintra mas, durante a Idade Moderna (altura em que as costas portuguesas eram pontos de ataque frequente por parte de piratas e de corsários), desempenhou um importante papel na defesa e vigia da entrada de Lisboa.

Estamos muito mal informados a respeito da sua origem. A primeira referência documental acerca da sua existência consta de uma planta do Arquivo da Casa do Cadaval e está datada de 1693, mas é certo que a edificação original é anterior. De acordo com Carlos Pereira CALLIXTO, 1980, a sua erecção ficou a dever-se ao Conde de Cantanhede, D. António Luís de Meneses, pelos finais do reinado de D. João IV ou já nos de seus dois filhos, D. Afonso VI ou D. Pedro II. Constatamos, desta forma, que o forte se insere no amplo processo de fortificação da linha de costa, levado a cabo em simultâneo com a Guerra pela Independência nacional após a revolução de 1640, processo que movimentou imensos recursos do reino empobrecido e que está na origem de muitas das fortalezas costeiras que ainda existem, desde a foz do Guadiana à foz do rio Minho.

A privilegiada localização estratégica da fortaleza cedo motivou que se instituísse como principal ponto militar da linha defensiva que ligava o Cabo da Roca a Belém e, até, a São Francisco de Xabregas, a nascente da capital. Como ponto mais ocidental desta linha, desempenhava papel preponderante no controlo das embarcações que demandavam a cidade, pelo lado Norte, bem como daquelas que saíam de Lisboa em direcção à Biscaia ou ao Canal da Mancha.
Apesar desta relativa importância, o forte localizava-se numa zona de difícil acesso e bastante distante da capital. Estes factos terão levado a que, passada a primeira época de impacto das Guerras Peninsulares, o forte tenha entrado em decadência, não se actualizando em relação às inovações tecnológicas da viragem para o século XVIII e, principalmente, não sendo objecto de melhoramentos e de trabalhos de consolidação. É desta forma que, em 1751, um inspector do reino descreve-o como estando bastante arruinado, não obstante a mais valia estratégica da sua posição geográfica. A descrição que nos deixou é esclarecedora quanto à ruína em que já então se encontrava: a porta principal estava destruída e não possuía já quaisquer portas ou janelas, multiplicando-se as fissuras no aparelho exterior.
Pouco tempo depois, todavia, parece que se efectuou uma reparação de alguma amplitude, uma vez que, em 1777, o paiol encontrava-se em bom estado de conservação e, uma década antes, as suas paredes possuíam peças de artilharia. Esta campanha de restauro, possivelmente ditada pela necessidade de actualização mínima das nossas fortalezas face a nova investida espanhola, retardou durante mais algum tempo a inevitável decadência do forte. Na viragem para o século XIX ainda se mencionam algumas obras de reparação mas, em 1813, já não consta que tivesse qualquer guarnição e as poucas peças de artilharia que se conservavam estavam velhas. Em 1829 deixou de aparecer como estrutura militar e, dois anos depois, um relatório absolutamente negativo em relação à sua relevância estratégica e dificuldade de acessos determinou o abandono por parte do Ministério da Guerra.
Reduzido a um monte de pedras em 1940, não se vislumbra, hoje, qualquer dos espaços referidos numa descrição de 1796. Esta, noticiava que o forte era de pequenas dimensões e constituído por bateria voltada ao mar, dependências anexas para alojamento da guarnição e quatro espaços abobados para armazém e paiol. Na actualidade, apenas se conservam alguns troços e parte da abóbada do paiol, elementos por demais escassos de uma tão importante fortificação da nossa costa a Ocidente de Lisboa.»
 
« Após a revolução de 1640 foram construídos ao longo da costa Oeste alguns fortes, cuja principal função era a defesa da barra do Tejo.
Segundo pesquisa efectuada, o Marquês de Fronteira terá elaborado um relatório após uma visita de inspecção ao Forte da Roca, em 1675. Nesse relatório, actualmente arquivado na Torre do Tombo, poderá ler-se que a guarnição era composta por 5 soldados, 2 artilheiros e 1 cabo, possuindo o forte 4 peças de ferro e 1 de bronze.
O forte situava-se numa falésia rochosa, num local conhecido por “Espinhaço”, sobranceiro a duas pequenas enseadas e mais perto da Azóia que do Cabo da Roca.
São apenas duas as referências, comprovativas da existência do Forte da Roca: o relatório do Marquês de Fronteira e uma planta do forte constante do “Códice da Casa de Cadaval”, cujo autor se desconhece, mas se sabe ter sido elaborada em 1693. Foi uma fortificação de pequenas dimensões, cujas referências podem ser lidas nas “Memórias Militares” da autoria de António do Couto de Castelo Branco em 1707, bem como no “Tratado Vigessimo Sexto”.
A propósito do forte, num importante documento de 1720 (guardado na Biblioteca Pública de Évora) assinado pelo Conde de Unhão e intitulado “Notícia de Estado”, informa sobre o Forte e a Vigia da Roca, dando-nos conta que o forte estava em ruínas e necessitava ser reconstruído. Quanto à vigia da Roca, o autor do documento salientava que aquela constava de uma casa onde se abrigavam os dois Paisanos da Companhia de Ordenança de Colares.
É pelo documento do Conde de Unhão que se fica a saber da existência da Vigia da Roca, desconhecendo-se no entanto o local exacto onde se situava.
Em 1735, através da “Relação das Fortalezas e Fortes de Toda a Marinha da Província da Estremadura”, é dado conhecimento que o forte estava inoperativo, com todas as peças de ferro incapazes de servir.
Quando em 1751, Eugénio dos Santos Carvalho elabora um relatório, após uma inspecção a todas as fortificações da costa Oeste, subscreveu que o Forte da Roca, embora muito bem localizado, estava completamente em ruínas e abandonado, não sendo rentável reconstruí-lo, devido aos elevados custos que atingiriam as obras.
Todos os restantes relatórios existentes sobre o forte (1763, 1767, e 1777) continuam a referir o estado de degradação da edificação e das peças de artilharia. Mesmo assim, alguns relatórios referem ainda a presença como vigias, de elementos de infantaria.
Mais recentemente, no ano de 1824, há notícia que o forte, mesmo em ruínas, serviu como ponto de vigia aquando da Guerra Civil entre D. Pedro e D. Miguel.
Em 1831 deu-se a “morte” do forte, após o relatório do Coronel do Corpo de Engenheiros José Lane declarar, que devido à grande altura em que se situava, não podia fazer qualquer dano ao inimigo. Estava assim condenado, não voltando a partir daquela altura a ser considerado como ponto de Vigia ou Forte.
No ano de 1910, o Rei nomeou comandante do Forte da Roca o Tenente-coronel na reserva, António Bernardo de Brito e Cunha, sendo apenas uma forma de homenagear aquele militar, com um cargo meramente honorífico."
Pesquisa. Igespar, família Brito e Cunha

NAUFRÁGIOS NO CABO DA ROCA

« Se a epopeia dos descobrimentos foi o momento alto da história pátria, nem só de glória foram esses dias fabulosos de Encontro e Descoberta. O mar, companheiro e generoso muitas vezes foi castigador e cruel, por vezes já quando longas viagens chegavam ao fim e à vista de costa amiga. Vem isto a propósito de recordar os vários naufrágios na costa de Sintra, muitos perto do Cabo da Roca onde no fundo dum mar alteroso jazem esperanças, fazendas e sonhos desfeitos, batidos por ondas justiceiras. Com efeito, para além de constituir imponente acidente geológico, o Cabo da Roca era relevante na náutica antiga como ponto de referência, juntamente com as Berlengas e o Cabo Espichel. Entre a ponta da Lamparoeira e o cabo da Roca, a isobatimétrica dos 50 metros vai-se aproximando sensivelmente da costa, situando-se a cerca de 4.5 milhas da primeira e a pouco mais de 1.5 milhas da segunda. A isobatimétrica dos 10 metros corre próximo da linha de costa e na generalidade por dentro dela os fundos são sujos.

Os perigos à navegação são muitos. Entre os mais relevantes encontram-se as Mesas, que são pedras emersas mas baixas, das quais a menor, a pedra das Gaivotas, parece caiada na sua parte superior. Estão situadas a cerca de 200 metros a Sul-sudoeste do focinho do cabo da Roca, constituindo perigo a quem fizer rota muito próximo de terra nesta área, em especial à noite.
Maior perigo constitui a pedra da Arca ou Broeiro, situada a cerca de 900 metros a Noroeste do cabo, submersa mas à flor da água e sobre a qual, com bom tempo, o mar não rebenta. Junto a esta pedra encontra-se um navio afundado e passa sensivelmente por ela o enfiamento do extremo norte do areal do Guincho com a pedra das Gaivotas. Entre o Broeiro e as Mesas há igualmente várias pedras, tanto mais perigosas porque são frequentes os nevoeiros, junto à costa, nos meses de Verão.
De entre os naufrágios mais conhecidos no Cabo da Roca ocorridos, um pequeno relato:
Em 1611, o Nuestra Señora de la Encarnación, nau espanhola de 90 toneladas vinda de Porto rico, e comandada por Pedro Rebolo.
Em 2 de Novembro de 1636, temos nota do afundamento do Santa Catarina de Ribamar, da Carreira das Índias, com 470 passageiros a bordo e em 1639 três navios turcos.
Já a 3 de Fevereiro de 1731, entre a Roca e Cascais perdeu-se a tartana francesa Notre Dame de Misericorde, que saíra a 1 de Janeiro de Marselha para Lisboa com um carregamento de mercadorias. Com a força das ondas foi lançada sobre as rochas por uma tempestade.
Outro relato, de 26 de Novembro de 1798 dá conta do afundamento do HMS Medusa, navio inglês de 50 canhões, sob o comando do capitão Alexandre Becker.
A 26 de Agosto de 1871, o vapor inglês Lunefeld, que viajava de Cardiff para Trieste, com rails de caminho de ferro terminou abruptamente o seu percurso.
A 3 de Maio de 1872,a polaca francesa Saint Germain, naufragou na Praia da Ursa e em 20 de Janeiro de 1875 também no Cabo da Roca o vapor português Insulano, construído em 1868, e propriedade da Empresa Insulana de Navegação, com 877 toneladas, foi abalroado pelo vapor inglês City of Meca.
Em 28 de Agosto de 1883, registo para o encalhe devido a nevoeiro do vapor inglês Rydal e em 15 de Agosto de 1907, o vapor inglês Anglia com 2055 toneladas de carvão lá ficou.
Na Baixa do Broeiro em 8 de Janeiro de 1886, o navio inglês Carnishman e no mesmo local, em 8 de Junho de 1890, o Fernando, vapor de pesca português.
Em 1907 novo afundamento, entre a Roca e o Raso, o Lutetia, da Compagnie de Navigation Sud Atlantique afundou o Dimitrios, vapor grego de 2506 toneladas e em 1922, a 23 de Outubro o vapor espanhol Begoña, de 3450 toneladas colidiu com o vapor inglês Avontown.
A 24 de Abril de 1963, menção para a colisão entre o navio motor Loiusa Gorthom e o navio espanhol Virgen de la Esperanza.
Mais recentemente em 1981, a 15 de Agosto o afundamento do navio turco Elazig, de 4836 toneladas.
De forma oficial, existem vários relatos de achados nesta zona. O primeiro comunicado às autoridades consistiu na descoberta e consequente levantamento de uma peça de artilharia bronze junto ao cabo da Roca, recuperada em Agosto de 1966 a baixa profundidade. Tratava-se de um canhão de bronze de 2,87 metros de comprido, com 13 cm de calibre e peso estimado de 1500 kg. Tinha duas cintas, dois munhões, duas asas de golfinho e cascavel chata com asa, tendo sido identificado como sendo uma meia colubrina do século XVII.
Depois, os achados sucederam-se – uma peça em bronze recuperada pela Marinha em 1967, um conjunto de outras 13 descobertas entre 4 e 8 metros de profundidade, um sino em bronze e um par de canhões descoberto por apanhadores de algas. »

O CULTO DOS PROMONTÓRIOS EM PORTUGAL

« A divinização de montes e promontórios inicia-se em tempos pré-históricos, com o culto a ser sucessivamente reactualizado por romanos, cristãos e muçulmanos. Em Portugal, os cabos de S. Vicente/Sagres, do Espichel  e da Roca foram sacralizados desde o Neolítico final.

A divinização dos montes inicia-se em tempos pré-históricos e está claramente registada na Península Ibérica: no noroeste peninsular são conhecidos os casos de teónimos nos maciços montanhosos do Larouco, situados na fronteira entre Portugal e a Galiza, com os ex-votos dedicados ao deus Larauco ou Larocuo em Vilar de Perdizes (Montalegre), no Curral das Vacas (Chaves) e Baltar (Ourense, Galiza); do Marão, com a ara de Guiães (Vila Real) dedicada ao deus Marandico; e da montanha leonesa de Teleno, com uma ara (San Martín de Viloria) e uma medalha de prata (Quintana del Marco) dedicadas ao deus Tileno. Mencionem-se ainda os diversos mons sacer, ou montes santos, localizados em território português, como as serras de Sintra e de Monsanto junto a Lisboa ou a localidade de Monsanto, na Beira, bem como o caso de Pitões das Júnias (Montalegre), talvez um local originalmente consagrado ao culto das deæ matres, depois convertidas em Iunones .

Especial destaque merece os promontórios e cabos que dominam as terras baixas ou se apresentam orograficamente inexpugnáveis. Considerados lugares sagrados por inúmeros povos antigos, os promontórios constituem pontos altos de uma verdadeira geografia numinosa e locais de hierofanias. Misteriosos braços de montanhas que dividem "terras, mares e céu" - assim Plínio o Velho descreveu o Cabo da Roca na sua "História Natural" (Livro IV, 113) - topografias altaneiras onde o sol diariamente se apaga na vastidão oceânica, são loca sacra por excelência, témenos ou recintos sagrados, altares de pedra que escondem segredos insondáveis.

Os promontórios não representam apenas um mero acidente geográfico; eles são, em simultâneo, um lugar de história e de religião - e, portanto, de tradição e de arte. O monte Carmelo constitui um bom exemplo, entre tantos outros que poderiam citar-se, de um local sucessivamente sacralizado por diversos povos. Situado no norte de Israel, a sua estranha configuração atraiu desde muito cedo a atenção dos navegadores: já em meados do segundo milénio antes de Cristo era mencionado como "promontório sagrado" numa lista de territórios conquistados pelo faraó Tutmósis III; os fenícios consideravam que o deus Baal aí se sentava no seu trono; e os judeus designaram-no por Rosh Kadesh, o "promontório sagrado" onde o profeta Elias convocou o povo de Israel e os profetas de Baal e da rainha Jezebel para demonstrar o poder de Deus. O filósofo sírio Jâmblico, no séc. IV a. C., considerou-o "a mais sagrada de todas as montanhas e de acesso proibido ao homem"; e, de facto, é o monte Carmelo venerado simultaneamente por judeus, cristãos, muçulmanos e bahá’is.

O culto destes locais numinosos ter-se-á iniciado em longínquas épocas pré-históricas com a qualificação dos primeiros espaços sagrados ou a erecção dos primeiros santuários. No mundo ocidental, e com a romanização, assistir-se-á não raras vezes à assimilação ou identificação desses antigos cultos a divindades romanas, num processo de interpretatio que os gregos já haviam aplicado e que os cristãos irão prosseguir e ampliar, reocupando e reconvertendo os velhos santuários pagãos, ou adaptando antiquíssimos ritos, para os atribuir à nova fé.»

 

O CABO DA ROCA

« O cabo da Roca e a serra de Sintra - o "monte Tagro" de Varrão (na opinião, por exemplo, do humanista Damião de Góis; modernamente, o monte Tagro tem sido identificado com a serra de Monsanto, isto é, "Monte Santo", em Lisboa), onde as éguas concebiam do vento, o "mons Sacer" de Varrão e Columela, o "cabo Ofiussa" de Avieno (numa evidente alusão ao culto ctónico das serpentes), o "cabo Magnum, Ártrabo ou Olissiponense" de Plínio o Velho ou o "promontório da lua" de Ptolomeu - se encontram associados a antigos cultos pré-históricos, sucessivamente romanizados, cristianizados e islamizados, tanto mais que a zona constituía um obrigatório local de passagem para os povos que do Mediterrâneo iam a caminho do Norte, em busca das ilhas Cassitérides, ou que do Norte se dirigiam para as ricas zonas do centro-sul peninsular, a caminho do mar Mediterrâneo. Indício claro desses cultos astrais são as inúmeras lúnulas calcárias, ou placas em forma de crescente lunar, descobertas em jazidas arqueológicas da região e que expressivamente documentam o culto prestado à Lua.

Permanentemente "mergulhada numa bruma que não se dissipa", como dizia no séc. X o geógrafo árabe Al-Bacr, a serrania deveria ter surgido aos povos antigos como um axis mundi simbólico. A serra de Sintra não tinha então o aspecto densamente arborizado que hoje apresenta, graças à vasta campanha de florestação empreendida no séc. XIX pelo Rei D. Fernando II e às sucessivas reflorestações ocorridas no séc. XX; e a própria rudeza escalvada das serranias deveria ter contribuído para a sua sacralização. Ainda nos finais do séc. XVIII, o visitante inglês James Murphy descrevia assim o aspecto da serra: "Para onde quer que viremos os olhos, a mente impressiona-se com as terríveis obras da Natureza: de um lado está o oceano distante, cuja superfície se mistura com o céu azul; lá em baixo, o vale profundo assemelha-se a uma caverna majestosa; o aspecto despedaçado dos penhascos nos declives da serra, como se estivessem rasgados aos pedaços e emergindo de todos os lados do solo, ameaçam ao menor toque ruir e destruir a vila" (12, p. 24).

Junto ao Cabo, a capela medieval de São Saturnino - fundada no séc. XII por um dos companheiros e alferes-mor do Rei D. Afonso Henriques, D. Pêro Pais - situada a escassos metros da ermida do séc. XVI de Nossa Senhora da Peninha, constitui a cristianização de um antigo culto a Saturno, certamente similar ao que se registava mais a sul, no Promontório Sacro. Já no término de Colares, no Alto da Vigia, junto à ribeira do mesmo nome, na foz do rio de Maçãs, existira outrora um grande santuário dedicado ao Sol e à Lua, datável dos sécs. II-III d. C. e de que no séc. XVI apenas se viam esparsas ruínas. Na época, o recinto circular do santuário (talvez um templo, talvez um simples témenos) erguia-se sobre uma elevação rochosa que avançava pelo mar, até aos 40 metros de altitude; ao assinalar, de modo simultaneamente real e simbólico, o extremo ocidental da Romanidade, constituía-se como um verdadeiro finis terræ.

Conhecido desde 1505 através de descoberta, por Valentim Fernandes ou Valentim de Morávia, de três aras consagradas a "Soli et Lunæ, Soli Æterno Lunæ e Soli Æterno", o humanista André de Resende estudou-o na sua célebre obra "De Antiquitatibus Lusitaniæ," publicada em 1593: "Junto ao sopé da serra, mesmo no cimo do promontório, que é cortado abruptamente sobre o oceano, existiu outrora um templo consagrado ao Sol e à Lua, do qual agora apenas existem ruínas nas areias do litoral e cipos, alguns com inscrições reveladoras da antiga superstição" (14, p. 98). Já o humanista Francisco de Holanda desenhara anteriormente o santuário de forma imaginativa, com um total de dezasseis aras; incluiu o desenho na obra "Da Fabrica que Faleçe ha Çidade de Lysboa", em 1571, e descreveu o santuário como "um círculo ao redor cheio de cipos memórias dos Imperadores de Roma".

O arqueólogo Cardim Ribeiro sublinha: "Estamos claramente perante uma intencional forma de sincretismo entre um culto de cariz astral e o culto imperial, operada num santuário carregado de simbolismos pela sua singular localização geográfica e, porventura, também herdeiro de remotas tradições religiosas regionais, quer ligadas ao ciclo solar, quer à ancestral deusa lunar e salutífera que, de noite, vaguearia pelas penedias e pelos densos bosques do monte Sagrado, da Serra da Lua" .»

Autor: Heitor Baptista Pato in CeltIberia